É muito difícil olhar para dentro de si e reconhecer que há feridas de rejeição, abandono, incompreensão, negligência, eventualmente até maus tratos e abusos. É dolorido perceber que estas feridas foram feitas pelas pessoas mais próximas: pais, parentes, pessoas que deveriam ter cuidado de nós, nos acolhido e protegido. No entanto, Jesus traz uma boa notícia quando afirma que “... Nada há, fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar. Mas é o que sai dele que o contamina... Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, e a loucura. Todos estes males procedem de dentro, e contaminam o homem” (Mc 7.1-23).
Cristo nos afirma que este mal não precisa nos contaminar. Em primeiro lugar, não somos responsáveis pelo que o outro fez, mas apenas pelo que fazemos com o mal que nos fizeram. Podemos tentar fazer de conta que não existe, negar que tenha nos machucado, justificar aqueles que nos feriram e assumir a culpa deles. Neste caso, somos candidatos a doenças físicas, dor de estômago, enxaqueca e outros distúrbios que não passam de somatizações das emoções reprimidas. Ou nos tornamos extremamente perfeccionistas para garantir o reconhecimento do outro e tentar evitar novas agressões.
Outra alternativa destrutiva é abrigar este mal, remoêlo, perpetuá-lo, ou seja, alimentar a ferida para punir o outro ou para que tenham pena de nós. É a atitude do deficiente que acentua sua deformação para pedir dinheiro na rua. Podemos ainda revidar e, com isto, nos assemelhar justamente àquilo que repudiamos. Tornamo-nos pessoas amargas, críticas e agressivas. Nestas três hipóteses, o mal venceu, pois conseguiu nos contagiar. Nós nos machucamos e machucamos o outro a partir destas feridas não curadas. Desenvolvemos mecanismos de defesa e ataque que fazem de nós pessoas perigosas, como o terrorista que mata para vingar a morte de amigos e parentes.
Mas existe um caminho de cura que passa pelo reconhecimento da amplitude do mal e o perdão fundamentado na atitude de Jesus na cruz. Vencer o mal com o bem é resistir ao mal, recusar-se a deixar que ele tome conta do nosso coração, deforme nossa auto-imagem e nos leve a desistir de amar e ser amado. Deus nos capacita a digerir os pensamentos e as emoções que nos assaltam quando depositamos todas estas feridas aos pés da cruz. A vitória que Ele já conquistou também é nossa se escolhemos o bálsamo e o antídoto do seu amor.
É importante reconhecer no nosso íntimo a tentação de sucumbir ao mal, de deixar-nos abater e até destruir por ele. Somos tentados a desconfiar do amor de Deus por ter deixado acontecer aquele sofrimento. A vida nos parece absurda e perdemos o desejo de viver. Mas quando consideramos que até Cristo foi alvo da maldade humana e não fugiu, nem cedeu ao ódio, mas, pelo contrário, reafirmou o seu amor incondicional, somos encorajados a seguir suas pegadas e atravessar o vale da sombra da morte porque encontramos nEle esta fonte inesgotável de amor. Assim, levantamos a cabeça e nos dispomos a encarar a vida de peito aberto, com sua porção de sofrimento, mas também de alegria, de realizações, de presentes a serem desfrutados.
Tive a oportunidade de acompanhar em terapia algumas mulheres que foram abusadas pelo pai na sua infância. Esta é talvez a ferida mais perversa e devastadora, pois ela priva a criança de vínculos essenciais para a sua existência. Ela é violentada justamente por aquele de quem esperava afeto e proteção. Perde também o suporte da mãe por medo de se abrir ou, pior, porque a mãe torna-se cúmplice através de seu silêncio e omissão. A criança tende a assumir a culpa pela atitude dos pais e se sente um lixo. Entrar em contato com esta ferida requer muita coragem, mas permite perdoar-se pelas tentativas equivocadas de lidar com a situação. Indo ao encontro desta criança envergonhada, cada mulher pôde reconciliar-se consigo mesma, resgatar a espontaneidade e criatividade perdidas, descortinar novos horizontes, amar e ser amada.
Isabelle Ludovico da Silva, psicóloga com especialização em Terapia Familiar Sistêmica.